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Você vai ler um trecho de um texto dramático que conta a história de Odorico Paraguaçu, candidato a prefeito na fictícia cidade de Sucupira. A peça está dividida em nove quadros. Leia a seguir o início do primeiro quadro.

 

O BEM-AMADO

Pequena praça de uma cidadezinha de veraneio do litoral baiano. Há uma grande árvore, um coreto e uma venda. Sob a árvore, sentado no chão, Chico Moleza dedilha molemente o violão. Em frente à vendola, Seu Dermeval remenda uma rede de pescar. É um mulato gordo e bonachão, de idade já avançada.

 

Passa-se meio minuto. Entram Mestre Ambrósio e Zelão carregando um defunto numa rede.

 

MESTRE AMBRÓSIO - Vamos molhar um pouco a goela na venda de seu Dermeval, Zelão.

ZELÃO - É bom.

DERMEVAL (Indicando o defunto.) - Mestre Leonel?

MESTRE AMBRÓSIO - É. Embarcou, coitado.

DERMEVAL (Dirige-se à venda.) - No mar?

MESTRE AMBRÓSIO - Qui-o-quê. Janaína quis saber dele não. Esticou em terra mesmo. [...] Vamos se chegando, Zelão, que ainda temos três léguas pela proa.

DEMERVAL - Três léguas. Quando chegarem lá, em vez de um defunto vão ter dois para enterrar.

MESTRE AMBRÓSIO - Isso é uma terra infeliz, que nem cemitério tem. Pra se enterrar um defunto é preciso ir para outra cidade.

MOLEZA - Não era melhor jogar o corpo no mar?

MESTRE AMBRÓSIO - Pra quê? Pra vir dar na praia de manhã? [...]

 

Odorico entra, suando por todos os poros. Não é propriamente um belo homem, mas não se lhe pode negar certo magnetismo pessoal. Demagogo1, bem-falante, teatral no mau sentido, sua palavra prende, sua figura impressiona e convence. Veste um terno branco, chapéu-panamá.

 

ODORICO - Ah, lá estão! Ainda cheguei a tempo.

DERMEVAL - Bom dia, Coronel Odorico.

ODORICO - Bom dia, minha gente.

 

Ao verem Odorico, Mestre Ambrósio e Zelão deixam o balcão. Moleza para de tocar.

 

MESTRE AMBRÓSIO - Bom-dia, Coronel. Fizemos uma parada rápida, pra molhar a goela. Vamos ter que gramar três léguas.

ODORICO - Três léguas. Pra se enterrar um defunto é preciso andar três léguas.

DERMEVAL - Um vexame!

MOLEZA - Vexame pro defunto, ter que viajar tanto depois de morto.

ODORICO - E uma humilhação para a cidade, uma humilhação para todos nós, que aqui nascemos e que aqui não podemos ser enterrados.

MOLEZA - Muito bem dito.

 

Entram Dorotéa e Judicéa. A primeira é professora do grupo escolar, de maneiras pouco femininas, com qualidades evidentes de liderança. Paradoxalmente2, Odorico exerce sobre ela terrível fascínio. Também sobre Juju esse fascínio se faz sentir. E isso poderia ser explicado por diferentes tipos de frustração.

 

ODORICO - Quem ama sua terra deseja nela descansar. Aqui, nesta cidade infeliz, ninguém pode realizar esse sonho, ninguém pode dormir o sono eterno no seio da terra em que nasceu. Isto está direito, minha gente?

TODOS - Está não!

ODORICO - Merecem os nossos mortos esse tratamento?

DOROTÉA E JUJU - Merecem não.

 

Entram Dulcinéa e Dirceu Borboleta, este com uma vara de caçar borboletas e uma sacola. Odorico exerce sobre ela o mesmo fascínio que sobre suas irmãs Judicéa e Dorotéa. Quanto a ele, é um tipo fisicamente frágil, de óculos, com ar desligado.

 

ODORICO (Já passando a um tom de discurso:) - Vejam este pobre homem: viveu quase oitenta anos neste lugar. Aqui nasceu, trabalhou, teve filhos, aqui terminou seus dias. Nunca se afastou daqui. Agora, em estado de defuntice compulsória, é obrigado a emigrar; pegam seu corpo e vão sepultar em terra estranha, no meio de gente estranha. Poderá ele dormir tranquilamente o sono eterno? Poderá sua alma alcançar a paz?

TODOS - Não. Claro que não.

 

Populares são atraídos pelo discurso de Odorico, que se empolga, sobe ao coreto.

 

ODORICO - Meus conterrâneos, vim de branco para ser mais claro. Esta cidade precisa ter um cemitério.

TODOS - Muito bem! Apoiado!

 

DOROTÉA - Uma cidade que não respeita seus mortos não pode ser respeitada pelos vivos!

ODORICO - Diz muito bem dona Dorotéa Cajazeira, dedicada professora do nosso grupo escolar. É incrível que esta cidade, orgulho do nosso Estado pela beleza de sua paisagem, por seu clima privilegiado, por sua água radioativa, pelo seu azeite de dendê, que é o melhor do mundo, até hoje ainda não tenha onde enterrar seus mortos. Esse Prefeito que aí está...

DOROTÉA, DULCINÉA E JUJU (Vaiam.) - Uuuuuu!

ODORICO - Esse Prefeito que aí está, que fez até hoje para satisfazer o maior anseio do povo desta terra?

DIRCEU - Só pensa em construir hotéis para veranistas3!

DULCINÉA - Engarrafar água para vender aos veranistas!

ODORICO - Tudo para os veranistas, pessoas que vêm aqui passar um mês ou dois e voltam para suas terras, onde, com toda a certeza, não falta um cemitério. Mas aqui também haverá! Aqui também haverá um cemitério!

JUJU (Grita histericamente:) - Queremos o nosso cemitério!

DOROTEIA, JUJU, DIRCEU E DULCINÉA - Queremos o cemitério! Queremos o cemitério!

ODORICO - E haveremos de tê-lo. Cidadãos sucupiranos! Se eleito nas próximas eleições, meu primeiro ato como Prefeito será ordenar a construção imediata do cemitério municipal.

TODOS (Aplausos.) - Muito bem! Muito bem!

 

Uma faixa surge no meio do povo.

VOTE NUM HOMEM SÉRIO E GANHE SEU CEMITÉRIO

 

ODORICO - Bom governante, minha gente, é aquele que governa com o pé no presente e o olho no futuro. E o futuro de todos nós é o campo-santo.

MOLEZA - O campo-santo.

DULCINÉA - Que homem!

DIRCEU (Repreende-a:) - Du, tenha modos!

ODORICO - É preciso garantir o depois de amanhã, para ter paz e tranquilidade no agora. Quem é que pode viver em paz mormentemente sabendo que, depois de morto, defunto, vai ter que defuntar três léguas pra ser enterrado?

MOLEZA - É mesmo um pecado!

ODORICO - Uma vergonha! Mas eu, Odorico Paraguaçu, vou acabar com essa vergonha.

GOMES, Dias. O bem-amado. São Paulo: Ediouro, 2003.

Glóssário

1. Demagogo: pessoa com um claro interesse em manipular ou agradar a massa popular, incluindo promessas que muito provavelmente não serão realizadas, visando apenas à conquista do poder político.

2. Paradoxalmente: contraditório, insensato.

3. Veranista: característica de ou pessoa que passa férias ou temporadas, geralmente durante o verão, em algum lugar.

 

Questão 21.(UFRS) O gênero dramático, entre outros aspectos, apresenta como característica essencial:

a.) a presença de um narrador.

b.) o extravasamento lírico.

c.) a musicalidade.

d.) a estrutura dialógica.

e.) o descritivismo.

 

 

Questão 22. O texto teatral começa com a referência a um fato já ocorrido que cria um problema a ser enfrentado pelas personagens. Esse problema é

a.) a morte de um habitante do lugar.

b.) a demora em se construir um cemitério em Sucupira.

c.) o traslado de um defunto a outra cidade por falta de cemitério em Sucupira.

d.) a demora em se enterrar um morto na cidade de Sucupira.

e.) o uso de um problema em Sucupira para se fazer uma campanha eleitoral.

 

 

Questão 23. Releia o trecho que contém a caracterização de Odorico.

“Odorico entra, suando por todos os poros. Não é propriamente um belo homem, mas não se lhe pode negar certo magnetismo pessoal. Demagogo, bem-falante, teatral no mau sentido, sua palavra prende, sua figura impressiona e convence. Veste um terno branco, chapéu-panamá.”

 

A personagem não é caracterizada de forma positiva. Ele é chamado de “demagogo, bem-falante, teatral no mau sentido”. O trecho que exemplifica perfeitamente essa caracterização é

a.) “Tudo para os veranistas, pessoas que vêm aqui passar um mês ou dois e voltam para suas terras, onde, com toda a certeza, não falta um cemitério”.

b.) “Três léguas. Pra se enterrar um defunto é preciso andar três léguas.”

c.) “Uma vergonha! Mas eu, Odorico Paraguaçu, vou acabar com essa vergonha”. Essa fala também não indica demagogia e uma certa teatralidade?

d.) “É preciso garantir o depois de amanhã, para ter paz e tranquilidade no agora.”

e.) “Agora, em estado de defuntice compulsória, é obrigado a emigrar; pegam seu corpo e vão sepultar em terra estranha, no meio de gente estranha. Poderá ele dormir tranquilamente o sono eterno?”

 

 

Questão 24. A morte de um morador de Sucupira, que precisa ser enterrado em outra cidade, leva Odorico a iniciar um discurso. Pela forma como Odorico posiciona-se, é possível inferir que ele

a.) se incomoda como cidadão e quer buscar uma solução para o problema.

b.) está indignado com os maus tratos sofridos pelo homem mesmo depois de morto.

c.) está preocupado unicamente com seu próprio bem-estar.

d.) se aproveita da oportunidade para fazer disso sua plataforma de campanha política.

e.) pretende construir um cemitério na cidade a fim de desviar o dinheiro público.

 

 

Questão 25. Releia os três excertos a seguir:

I. “Aqui, nesta cidade infeliz, ninguém pode realizar esse sonho, ninguém pode dormir o sono eterno no seio da terra em que nasceu.”

 

II. “esta cidade, orgulho do nosso Estado”.

 

III. “Vejam este pobre homem: viveu quase oitenta anos neste lugar. Aqui nasceu, trabalhou, teve filhos, aqui terminou seus dias. Nunca se afastou daqui. Agora, em estado de defuntice compulsória, é obrigado a emigrar; pegam seu corpo e vão sepultar em terra estranha, no meio de gente estranha. Poderá ele dormir tranquilamente o sono eterno? Poderá sua alma alcançar a paz?”

 

O recurso utilizado por Odorico para envolver o povo é, respectivamente,

a.) exagero, bajulação e chantagem emocional.

b.) bajulação, chantagem emocional e exagero.

c.) chantagem emocional, exagero e bajulação.

d.) exagero, chantagem emocional e bajulação.

e.) chantagem emocional, bajulação e exagero.

 

 

Questão 26. Para criar o humor, a fala de Odorico é, algumas vezes, construída a partir de um jogo de palavras, como em “Meus conterrâneos, vim de branco para ser mais claro. Esta cidade precisa ter um cemitério”. O efeito produzido por “vim de branco para ser mais claro” é que o termo claro, nesse contexto,

a.) significa somente que Odorico quer falar de forma simples e direta

b.) indica que Odorico não gosta de longos discursos e que vai direto ao ponto.

 

c.) tem dois significados: a cor clara, no caso branco, e ser simples e pouco objetivo em suas colocações. 

d.) apresenta apenas o sentido de ser explícito, de não querer deixar dúvidas.

e.) possui dois significados: o de cor clara, no caso branco, e o de ser explícito, de não deixar dúvidas.

 

 

Questão 27. Com excerto “É preciso que se garanta o depois de amanhã, para ter paz e tranquilidade no agora”, Odorico está se autopromovendo, querendo convencer as pessoas de que ele considera importante a construção de um cemitério na cidade e de que fará isso. Entretanto, para manter um certo distanciamento daquilo que está dizendo, ele faz uso de uma oração subordinada substantiva

a.) objetiva direta.

b.) subjetiva.

c.) objetiva indireta.

d.) predicativa.

e.) completiva nominal.     

 

 

Questão 28. No excerto “Não é propriamente um belo homem, mas não se lhe pode negar certo magnetismo pessoal”, pode-se afirmar que

 

I. há nele uma oração coordenada sindética adversativa.

II. o período, da forma como foi construído, destaca a informação de que Odorico é um belo homem.

III. o período destaca a informação de que Odorico tem um “certo magnetismo pessoal”.

IV. o período, da forma como foi construído, destaca a informação de que Odorico não é um belo homem.

 

As afirmativas que mantêm relação com o excerto são

a.) I e II.

b.) I e III.

c.) I e IV.

d.) I, III e IV.

e.) I, II e III.

 

 

Questão 29. No excerto "Uma cidade que não respeita seus mortos não pode ser respeitada pelos vivos!", a oração destacada é

a.) subordinada adjetiva restritiva por não ter vírgula e por referir-se a uma cidade específica, ou seja, a que não respeita mortos.

b.) subordinada adjetiva explicativa por não ter vírgula e acrescentar uma característica à cidade.

c.) subordinada adjetiva restritiva, pois a oração iniciada pelo pronome relativo trata de parte das cidades do Estado.

d.) subordinada adverbial causal por indicar a causa da falta de respeito pelos mortos e pelos vivos.

e.) subordinada adjetiva explicativa por deixar de tratar de todas as cidades para referir-se a apenas algumas.

 

 

Questão 30. Leia as frases a seguir:

I. "Quando chegarem lá, em vez de um defunto vão ter dois para enterrar."

II. Fizemos uma parada rápida para que molhássemos a goela.

III. "Se eleito nas próximas eleições, meu primeiro ato como prefeito será ordenar a construção imediata do cemitério municipal"

IV. Minha cidade merece tanto um cemitério que lutarei muito por sua construção.

 

As orações subordinadas adverbiais destacadas expressam, respectivamente, as circunstâncias de

a.) tempo, causa, condição e consequência.

b.) tempo, causa, condição e proporção.

c.) tempo, finalidade, condição e consequência.

d.) tempo, finalidade, condição e causa.

e.) tempo, consequência, condição e proporção.

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